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Palcos sobre palcos sobre palcos: o animador aparente e a justaposição de espaços e linhas narrativas no teatro (de bonecos) contemporâneo.

Comunicação apresentada no Encontro do Grupo de Trabalho ABRACE Territórios e Fronteiras, realizado na ECA-USP, em novembro de 2006.

Resumo:
Tomando como ponto de partida o artigo Visual Narrative, do escultor e marionetista israelense Hadass Ophrat, o autor comenta o espetáculo de animação “Sangue bom” ressaltando a importância do emprego do animador aparente como um elemento determinante do teatro de animação de bonecos e formas contemporâneo.
A presente comunicação lida com questões que vêm sendo por mim trabalhadas no projeto de pesquisa apresentado em nível de mestrado em teatro, em curso na Universidade do Rio de Janeiro. Essa pesquisa se propõe a investigar os meios de eleição (escolha/adaptação/escrita), notação e inserção (hierarquia, relação com os demais elementos constitutivos da cena) do texto teatral em experiências relacionadas ao teatro de animação contemporâneo, ou seja, com espetáculos de companhias e de iniciativas artísticas dedicadas a trabalhar com o teatro de animação de bonecos e formas de modo a incorporar as indagações e as tensões propostas dentro do contexto artístico identificado como contemporâneo.

Gostaria então, de procurar tecer alguns comentários a respeito de uma reflexão que orienta em grande parte as minhas indagações e formulações acerca da relação da cena contemporânea de teatro com a animação de formas, e como estas se relacionam com a transformação da idéia de texto teatral em processo a partir do que se denominou modernidade tardia.

Ao observarmos os trabalhos de algumas companhias brasileiras de teatro de bonecos fundadas ao longo das últimas duas décadas, como é o caso dos grupos Sobrevento de teatro de bonecos, da Companhia PEQUOD de teatro de animação, e do grupo TRUK´S, e de algumas iniciativas internacionais, tais como o grupo La Troppa, do Chile, os Minutemen, de Israel, os espetáculos do encenador francês Phillip Genty, e do artista plástico alemão radicado na Holanda Neville Tranter, será possível observar o emprego do animador aparente, e seu conseqüente aproveitamento dentro do espetáculo teatral.

O animador de bonecos, marionetista ou titeriteiro, nos trabalhos dos artistas e companhias citadas, não se encontra protegido pela empanada, panejamento ou quaisquer estruturas de ocultação. Mais que isso, os operadores dos bonecos ou objetos, pelo fato de estarem visíveis ao público, encontram-se inseridos dentro do próprio contexto do espetáculo, operando desta forma um tal número de quebras e desdobramentos sobre a percepção da cena teatral. O “puxador de fios”, posto diante dos olhos dos espectadores não busca mais escamotear sua influência sobre os bonecos, ele de fato a usa como parte do espetáculo, o que resulta num desdobramento da trama ficcional em planos distintos: o do boneco e o do personagem que o manipula. O espetáculo cinde-se em “espaços” enunciativos simultâneos, que podem ou não dialogar de dentro do contexto ficcional, mas cujo convívio opera uma interferência obrigatória na maneira como a ação cênica é lida.

Com vistas a melhor explicar o que acabo de afirmar, gostaria de tomar como exemplo o espetáculo “Sangue bom”, que estreou no ano de 1999 no Rio de Janeiro, sendo apresentado pela companhia PEQUOD de teatro de animação, com concepção e encenação de Miguel Vellinho. O espetáculo é uma paródia aos antigos filmes de horror que mostravam a figura do vampiro Conde Drácula. A irreverência expressa no próprio título dá conta do tipo de brincadeira que se pretende fazer. O espetáculo emprega bonecos manipulados de forma direta, ou seja, construídos de corpo inteiro e articulados, com os animadores (podendo chegar a até três em um único boneco) operando-os diretamente com as mãos sobre seus membros e cabeça (que pode vir a ter uma pega curta), e desta forma dando-lhes movimento. O texto do espetáculo não contém falas. Há, sim, sons incompreensíveis, supostamente pronunciados pelos personagens, (uma vez que ditos pelos animadores), à feição de algaravias e onomatopéias.

O cenário da peça é formado por caixas móveis, que servem, tanto para compor a caracterização de um cais antigo – caracterização essa que é complementada pelo figurino andrajoso dos atores e pela forma como estes transportam as caixas, aludindo ao trabalho de estiva –, também, com uma alteração da luz, sugerir a miniatura de um castelo sinistro, e finalmente, para reproduzir cenários de interior, onde se desenrolam grande parte da ação dos bonecos na peça, apoiando-os sobre as caixas-cenários, com os atores manipulando-os por trás.

Neste momento interrompo a descrição de Sangue bom para citar um artigo escrito pelo escultor e marionetista israelense Hadass Ophrat, publicado no primeiro número da revista E pur si muove, editada pelo Instituto Internacional da Marionete. O artigo, intitulado Narrativa visual, começa da seguinte maneira:

Os anos oitenta e noventa viram o uso hegemônico do podium, mesa, ou… tábua de passar roupa como aparo conveniente para animação de bonecos (geralmente bonecos de vara em manipulação posterior, revelando o animador), bem como para afixação de elementos cenográficos. Este uso, embora altamente funcional, ignora o espaço que rouba do palco. (OPHRAT: 2002, p.31.)

Mais adiante, no mesmo artigo, Ophrat menciona que o fato de parte do teatro de bonecos praticado ao longo das três últimas décadas valer-se do recurso do suporte aberto para manipulação aparente acaba por dispor “um palco sobre um palco”. Gostaria então, de chamar atenção para essas duas colocações feitas por Hadass Ophrat. A primeira, acerca do que ele considera um “roubo” do espaço do palco, e a segunda acerca da justaposição de palcos observada em parte do teatro de bonecos contemporâneo.

No caso de Sangue bom, as caixas manuseadas pelo elenco, e que servem de apoio de manipulação aos bonecos apresentam-se como palcos móveis que solicitam ao olhar do público a precedência hierárquica sobre o outro palco, transformado-o parcialmente em suporte de palcos, mas em cujo espaço desenrola-se uma ação que postula para si certa independência em relação ao que poderia ser considerada a ação principal da peça, desempenhada pelas ações dos bonecos. A outra ação, dos atores-manipuladores, é menos aparente, quase sub-reptícia, mas ainda assim propositadamente visível, e trata simultaneamente do ato de “fazer” a peça – pela forma como a ação da manipulação dos bonecos e do transporte das caixas é inteiramente evidente aos espectadores – e de uma ação relativamente independente àquela trama considerada central, inserindo assim a ação dos atores a um contexto que não se relaciona obrigatoriamente com a trama principal.

Sobre esse espaço “roubado” do palco teatral convencional monta-se um palco em miniatura, sobre o qual se desenvolve uma ação supostamente mais importante. Entretanto, ao permitir que se veja o que resta do palco maior, e sobretudo, que se vejam as ações que os atores-manipuladores executam sobre ele, o palco de bonecos permite que o olhar do público desvie e passeie entre a ação primária e as várias ações secundárias, o que resulta na instauração de uma determinada dinâmica na percepção do espetáculo.

O que acontece é que o “ladrão” acaba por permitir-se roubar por aquele que antes era considerada a “vítima”, propondo uma inversão voluntária dessa relação. Será a ação suave dos atores-manipuladores que aos poucos envolverá o público em um espetáculo múltiplo, em que planos narrativos sobrepõem-se, operam movimentos alternados de fusão e cisão, aproximam-se de um nivelamento hierárquico, propõem alterações à leitura da trama espetacular.

Esse ato de sobreposição de linhas narrativas observado em parte do teatro de animação contemporâneo relaciona-se com outras características da animação de formas tais como: a tradição do texto improvisado e da ação muda, a relação usual de precedência que a modelagem do boneco exerce sobre a definição do personagem e sobre a trama do espetáculo, e a grande importância dada à visualidade nas apresentações com bonecos em diversas culturas e tradições.
No artigo anteriormente mencionado, Hadass Ophrat afirma que a técnica de exposição do animador fundou uma nova narrativa para o teatro contemporâneo de bonecos, que ele chama de narrativa visual. Esta, entre outras questões, enfatiza em vez da unidade da trama, a relação que se opera entre as múltiplas tramas que o espetáculo dispõe diante da platéia. Diz ele:

A narrativa visual, diferente da narrativa dramática, oferece uma nova sintaxe: no lugar da sintaxe circunstancial, esta é associativa. Em vez de sintaxe linear, esta possui inúmeras camadas, é sincrônica e integrativa. (OPHRAT: 2002, p.33.)

Entretanto, embora o uso dos pódiums e caixas evidenciem a superposição de linhas narrativas – a torne mais evidentemente perceptível –, essa narrativa pós-moderna evocada por Hadass Ophrat estabelece-se basicamente a partir da relação do animador aparente com a forma animada. Seria o encontro em cena desses dois elementos: ator-manipulador e boneco/forma animada, um operador importante da transformação na maneira de se fazer teatro de animação nos últimos vinte ou trinta anos.

Para Ophrat a construção do tablado sobre o palco é um recurso redundante, e portanto dispensável para a construção de uma narrativa associativa, uma vez que seria o animador aparente o principal agente desse efeito. Entretanto, salta aos olhos a objetividade e a clareza com que o teatro de bonecos contemporâneo – no caso o espetáculo Sangue bom – dispõe a sobreposição de planos narrativos, servindo mesmo como modelo ou instrumento pedagógico de demonstração dessa e de outras questões pertinentes ao teatro na pós-modernidade, como seria o caso da consideração da idéia de personagem ou de representação do sujeito, assunto sobre o qual permito-me fazer um breve e superficial sobrevôo, apenas para mencionar um possível desdobramento da discussão que apresento.

Em Sangue bom, a construção de vários bonecos para um mesmo personagem permite que estes apareçam em cantos opostos do palco em frações de segundos, fazem com que um boneco mude das mãos de um manipulador a outro, permite que a voz de um personagem seja executada por um ator-manipulador distante do boneco que o representa. Enfim, espalha ao longo do espaço diferentes focos simultâneos de produção da personagem, pulverizando, descentrando a sua própria percepção. E, de fato, a visibilidade dos meios de apresentação da personagem, processada por meio do uso do animador aparente, é o principal elemento provocador dessa cena tensa, em que as suas forças constitutivas relacionam-se problematicamente.

Espero ter conseguido, com essa breve comunicação, deixar claras uma das indagações que orientam a minha pesquisa acerca do relacionamento existente entre a linguagem da animação de formas e a cena teatral contemporânea, sobretudo no tocante à relação do contemporâneo teatro de formas animadas e o texto teatral.

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