Sinopse
2 de março de 2015
Críticas
2 de março de 2015

Textos

Peer gynt

Textos

No fundo negro do fiorde

Quando terminamos de montar Filme Noir em 2004, me perguntava qual seria o passo seguinte. Costumo dizer sempre que um novo espetáculo começa na última cena do espetáculo anterior. Então assim foi. O namoro com a metalinguagem existente em Filme Noir era a deixa para a próxima aventura, sendo que o eixo mais interessante para uma nova pesquisa seria a variedade de relações que podem ser estabelecidas entre um ator e um objeto animado. E é nessa expansão do que hoje entendemos com Teatro de Animação que fundamentamos as linhas que percorreríamos nesta nova produção da PeQuod.

Henrik Ibsen era um nome cogitado tanto pela efeméride dos cem de sua morte, completados em 2006, quanto por sua importância dentro de um panorama de renovação cênica que o Teatro sofreu no final do século XIX. E na nossa seara, renovação sempre é um termo bem-vindo. Aproximar a dramaturgia ibseniana do nosso trabalho era, portanto, um excelente motivo para começarmos a criar um novo trabalho. Nosso navio adentrava um fiorde escuro e frio pronto para ser explorado.

No fundo negro do fiorde eu já sabia da existência da obra extremamente sedutora que é Peer Gynt. Na verdade, eu acredito que ela sempre esteve à espera de uma montagem com bonecos. Muitos a consideram pouco cênica, difícil de ser montada ou até mesmo feita para ser lida, não encenada. A estes, só tenho a dizer que justamente suas imbricações, sua falta de linearidade e seu tom fantástico cheio de personagens folclóricos, são os fatores que dão a exata medida para uma encenação com bonecos. E com atores. Com atores e bonecos. E com a imensa gama de recursos que tanto a cena contemporânea contempla quanto o próprio Teatro de Animação nos permite. E aqui estamos nós. Depois de inúmeras versões e possibilidades – algumas das quais ainda não temos como realizar, mas certamente serão retomadas em montagens futuras – nosso Peer Gynt vem à cena para provar que os limites sobre um palco são tênues e refeitos a cada dia.

Miguel Vellinho, texto do programa

A cena branca

Esta montagem de Peer Gynt tem como premissa uma série de desafios técnicos e temáticos que levam nossa companhia a experimentar, pela primeira vez, alguns novos recursos e possibilidades. Abolimos certas regras que sempre havíamos seguido à risca. Misturamos atores, bonecos e formas impondo-nos a obrigação de não perder a coerência. Permitimo-nos arriscar como nunca fizéramos. E tudo isso fez de Peer Gynt um projeto intrincado, como se não bastassem a complexidade original do texto de Henrik Ibsen e a personalidade multifacetada do seu protagonista.

Mas, a mais radical proposição desta montagem talvez seja o fato de estabelecermos Peer Gynt numa arena. Isto nos fez abandonar os balcões que normalmente servem de piso para os bonecos. Famosos por seus deslocamentos cinematográficos sobre o palco, nossos balcões deram lugar às escadas de metal, material frio – como a Noruega - e ingrato para a manipulação, mas que conseguimos transformar nova forma móvel e ágil de suporte.
Os sacos de lastro, elementos específicos do ambiente teatral, também são outra novidade. Sua pluralidade permitiu que eles funcionassem como coxia, para a entrada dos bonecos, e também como cenários, adereços e até mesmo personagens desta saga.

Assim ficou estabelecida a nossa cena, o lugar onde a história se daria. No próprio palco. No próprio teatro. Com coxia à mostra, revelando toda a engenharia que existe por trás de um efeito cênico. Nosso Peer Gynt parte, então, da tensão existente nas cordas que sustentam os sacos, numa verticalidade muitas vezes difícil de ser explorada por vez em cena. Cada saco de lastro guarda um mistério dentro de si.

Durante todo o processo de criação, nós nos perguntávamos “Quem é Peer Gynt?”. A identidade do personagem foi questionada inúmeras vezes e posta em cheque. Como trabalhar esta questão? Com base nos muitos textos que lemos ao longo dos ensaios, desconfiamos que a identidade do protagonista seja esfacelada. Ou melhor, pluralizada. Nosso Peer Gynt adquiriu feições contemporâneas, em que a sua identidade é questionada a todo o momento. Vimos o personagem como uma tela em branco a ser pintada. Como uma grande cena vazia, pronta para receber os atores que possam interpretá-la. Uma vez mais.

Agradeço a todos os que acompanharam de perto esta exploração. Àqueles que já estão juntos há algum tempo e àqueles que chegaram agora. Sou imensamente grato por nossa força e união.

Miguel Vellinho, texto do programa

Ode ao malandro norueguês

O reconhecimento internacional da obra do escritor Henrik Ibsen veio em primeiro lugar com o êxito da fase realista de sua dramaturgia, a partir de Os Pilares da Sociedade, em 1877, o que situou o autor como o maior inovador do teatro moderno. Dez anos antes, Ibsen publicara o poema Peer Gynt que, no contexto norueguês viria a se tornar um símbolo nacional, aqui no Brasil só comparável ao Macunaíma de Mário de Andrade. Como o “herói sem nenhum caráter” brasileiro, Peer Gynt era uma crítica severa do espírito da sociedade de seu tempo e, mesmo assim, tornou-se um ponto de identificação positiva para a cultura norueguesa. Henrik Ibsen escreveu a obra no exílio e o personagem Peer Gynt era a expressão de tudo o que incomodava o dramaturgo em sua pátria: a mentira, o auto-engano, a irresponsabilidade e a ambigüidade ética e moral, temas que nunca deixaram de ser alvo de sua pena afiada de Ibsen e que mantêm a atualidade até hoje.
Em 1866, Ibsen tinha criado a peça Brand, com grande sucesso, cujo personagem é de um radicalismo solitário que sacrifica tudo em nome dos ideais. Peer Gynt era o oposto de Brand, alguém que nunca enfrenta a realidade, mas sempre dá um jeitinho de fugir para o reino da fantasia, sem se preocupar com as conseqüências que seus atos possam ter para as pessoas que ama. É impossível, entretanto, não gostar de Peer, apesar de suas mentiras e inconseqüências, porque ele representa a irresponsabilidade alegre de quem é levado pelo impulso poético do prazer, mas nunca pelo cinismo calculista. Os sonhos e devaneios do Peer - filho de um fazendeiro outrora rico e respeitado que perde tudo e torna-se um alcoólatra antes de deixar viúva sua mulher, Aase – são despertados pela preocupação de “conhecer-se a si próprio”. Mas essa ambição é inviável no reino da razão. Peer consegue durante sua epopéia, ser muitas coisas: príncipe herdeiro dos trolls, traficante de armas, profeta, imperador de um hospício. Entretanto, quando volta a sua aldeia natal, ele perde de novo tudo e precisa enfrentar um enigmático fundidor de botões que pretende derreter sua alma, a menos que Peer consiga lhe mostrar quando e onde durante sua vida conseguiu ser “ele próprio”. O final surpreendente mostra que era apenas no amor da mulher Solveig que Peer sempre foi o que é, um sedutor irresistível na sua alegria voraz de vida.
O poema Peer Gynt só foi adaptado aos palcos dez anos depois, em 1876, e tornou-se a máxima expressão dramática e musical da alma nacional norueguesa nessa estranha “dialética da malandragem”, como diria Antônio Cândido, em que a exposição crua dos defeitos e fraquezas acaba revelando com graça e ironia, o melhor do universo poético e folclórico da Noruega.

Karl Erik Schøllhammer, texto do programa

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